segunda-feira, 25 de maio de 2009

CONTO: BOLERO

O BOLERO
Aniz Tadeu – 2001

Táaaaaaaaa________Ta-Tá-Tá-Tá-Tá-Tá-Tá_________Ta-Tá-Táaaaaaaaa.
Assim faz o som daquele pé batendo insistentemente no chão do trem. Os dedos movem-se em movimentos repetitivos a cada frase melódica. Os olhos se fecham e esbugalham-se de acordo com o crescente da música. Pedro de Juazeiro sente o pulso quando ouve o Bolero.
Sempre ouvira falar que bolero era aquela música melosa que fazia com que casais se apaixonassem durante uma dança. Seus pais tinham um disco velho e arranhado que, sempre que queriam ficar sozinhos, ouviam-no. Era uma velha coletânea de boleros clássicos, alguns cantados em português. Pedro se lembra bem disso, pois toda vez que seu pai o colocava para dormir, junto com seus outros quatro irmãos, logo após a refeição minguada da noite, o disco era colocado na vitrola. Alguns boleros daquele disco eram cantados em uma língua que “num sei dizê não”, dizia ele a cada vez que os ouvia. Era castelhano, sabemos, mas para seus ouvidos, que aprendiam a ouvir e sua boca, que um parco vocabulário de nosso idioma conseguia pronunciar, aquilo parecia de outro planeta. Às vezes reconhecia uma ou outra palavra que não fazia sentido já que não entendia o resto das frases. Gostava quando, em alguma faixa do disco, a música era cantada em “brasileiro” por Altemar Dutra. Aí sim conseguia entender o que era cantado e, em alguns momentos, compreendia porque seus pais ouviam-na toda vez que queriam namorar.
Mas que bolero é esse que ouve agora, sentado num vagão do trem, às seis da manhã, rodeado por dezenas de outros passageiros como ele. Como ele, somente no que diz respeito ao horário de entrada no trabalho e à necessidade de trabalhar. Mas ninguém mais, além dele, naquela hora e naquele trem, ouve o Bolero, de Ravel. Sente-se privilegiado e especial. Primeiro porque foi o arquiteto da obra que o presenteou com a gravação, desfazendo-se da fita por ter instalado, em seu carro, um CD Player, depois, conheceu um tipo de música diferente dos pagodes e axés que costumava ouvir e, também, por último, porque acabara gostando do presente e descobrindo novas funções para a própria música.
Pedro formou-se na arte da construção aprendendo o ofício com seu pai, pedreiro esmerado, vindo, ele mesmo, de pai e avô também pedreiros. Nesse momento, já há quase um ano, Pedro vem construindo um ‘Xopi Centi’ ali na Rua Domingos de Moraes, ao lado da estação Santa Cruz. Todo dia madruga às quatro da manhã, sai as cinco e pega um ônibus até a estação Santana. Lá desce e entra no metrô a caminho do trabalho, na zona sul da cidade. Consegue um lugar para sentar e abrindo sua sacola tira de lá um “walkman” para ouvir o Bolero. Por alguns poucos segundos, ainda com a sacola aberta, confere as roupas de trabalho e a marmita preparada pela mulher na noite anterior: arroz, feijão e dois ovos cozidos. Depois fecha os olhos e, com os pés e as mãos, acompanha o ritmo lento que, aos poucos, torna-se frenético e repetitivo, da música.
As pessoas, aglomeradas entre bancos, balaústres e cotovelos, desaparecem aos olhos de Pedro. Os compassos crescentes, que se repetem a cada cinco ou dez segundos, aveludam seus ouvidos contrapondo-se aos calos que acionam as teclas do aparelho. A carne trêmula pelo surdo percussivo acompanha o movimento do trem que ora sobe acima do chão ora desce em túneis intermináveis. Vez por outra Pedro abre seus olhos e certifica-se estar no ponto certo da viagem, considerando o tempo passado da música. Olha pela janela e vê tudo escuro com apenas pequenos pontos luminosos que parecem correr em direção oposta. Um outro trem passa e as janelas, por um ínfimo instante, fundem-se na mesma luz, tempo insuficiente para observar as pessoas do outro sentido. Pedro olha então para o próprio vagão e, sorrindo, como se dono da situação fosse, como se soubesse claramente do futuro, como se tivesse certeza de seu domínio do tempo, observa as pessoas em pé, apenas presas pelo cansaço, por suas incertezas, pela fadiga de mais um dia igual ao anterior, igual ao anterior, igual ao anterior...
Quinze minutos e alguns segundos se passaram e o metrô chega à estação Santa Cruz. No caminho para a escada rolante Pedro, enquanto rebobina sua fita, encontra outros colegas, operários como ele da mesma construção, chegados de outras periferias. Tem predileção por um colega, um que mora pra lá da estação Jabaquara, próximo a Americanópolis e que leva quase o mesmo tempo que ele para chegar ao trabalho. João da Caatinga é seu único amigo na construção. Também como Pedro, João tem dois filhos e uma mulher que prepara sua marmita. Ambos comem juntos na hora do almoço, exatamente quando o sinete bate onze horas.
Pedro trabalha. Trabalha em andaimes pingentes esquecendo-se de seu medo, que sem coragem não se arriscaria naquela altura. O edifício do “Xópi” está em fase de acabamento e o trabalho de Pedro é amaciar as paredes laterais para que seja aplicado o revestimento. Há quase um ano vem trabalhando nessa construção e sente orgulho toda vez que a olha da rua, na hora em que parte para sua casa. Todos os dias faz a mesma coisa. Vai ao vestiário dos operários, toma um banho ralo, veste sua roupa de viagem, sai para a rua e, por alguns momentos, observa o prédio. Depois se dirige à estação, pega o metrô, senta-se, quando há lugar, liga seu aparelho de som e ouve o Bolero. Sabe que quando a música acabar terá chegado a Santana.
Pedro de Juazeiro porque lá, na terra de Padre Cícero, nasceu. Seu pai há muitos anos, também arriscara a vida no “sul”, deixando sua mulher com quatro filhos à mercê do destino que o “Padim” lhes reservara. Um ano após, deixou São Paulo e retornou à sua cidade sem dinheiro e sem esperanças. Voltou a viver da colheita de frutas nos dias de safra. Pedro então fora concebido e, sem estudo, passou a acompanhar seu pai, todos os anos, às plantações. Cresceu e, percebendo seu futuro, um futuro sem futuro, decidira por partir, reeditando a aventura de seu pai, para o “sul” em busca de trabalho. Chegou e logo conheceu aquela com quem se casaria meses depois. Aqui está faz sete anos, vivendo de construir aquilo que não pode usufruir.

O “Xópi” tá quase acabando! – pensa Pedro dentro do trem a caminho de casa. Pensa ainda que precisa encontrar uma outra obra para trabalhar, senão como poderá sustentar mulher e dois filhos ainda pequenos. Sua mulher, vez por outra, trabalha como faxineira em “casa de família” e, deixando suas crias aos cuidados de uma vizinha de barraco, ajuda um pouco nas despesas da casa. Mais alguns dias e Pedro poderá ver sua obra acabada, talvez até entrar no dia da inauguração, se permitirem. “Não tenho roupa pra ir”, diz à mulher quando esta lhe pergunta se fora convidado. Pedro sente vergonha de dizer que estará lá apenas quem pode comprar e ele, pobre coitado, não tem aonde cair morto, mas mesmo assim acha que, “quem sabe”, fará um passeio com a família num domingo qualquer para ver o “Xópi” por dentro, todo limpinho, com aquele piso lustroso, com as vitrines transparentes das lojas, com a praça de alimentação recheada de restaurantes de “gente rica”, com crianças brincando e tomando sorvetes, enfim, ver e sonhar. “Vou guardar um trocadim pra comprar um sorvete pros meus moleques!”, pensa sorrindo.

Chegou o grande dia. Pedro e os outros são chamados para a dispensa. Recebem o que resta dos salários combinados e partem, todos, para suas casas. Pedro entra na estação do metrô não sem antes dar mais uma de suas olhadelas para o prédio que acabara de construir. Olha com atenção redobrada, pois não sabe quando tornará a vê-lo. Por alguns instantes recorda-se dos almoços com João, do andaime pingente e de como teve coragem para estar lá, das broncas do mestre-de-obras, de seus colegas que, talvez, não volte mais a conviver, de suas idas e vindas no metrô e no ônibus, do tempo de viagem marcado pelo Bolero, lembra-se de tudo que, por mais de um ano, fez parte de sua vida. Sempre as mesmas coisas.
Passa o bilhete na catraca e vai à plataforma de embarque. Lá observa as pessoas que dia após dia tomam o mesmo trem. Vê aqueles que, repletos de malas, se dirigem à estação Tiete. Vê uma senhora que carrega consigo uma sacola cheia de alimentos, uma cesta básica. Vê estudantes se dirigindo à escola. Vê homens de terno que retornam às suas casas. O trem chega. Todos se aglomeram na porta. Entram. Pedro entra. Não há lugar para sentar. Em pé, Pedro tira seu “walkman” da sacola e, baixando a cabeça, começa a ouvir Ravel. Mais que nunca, hoje, se certificará de que o tempo de viagem é exatamente o mesmo do tempo da música. Presta muita atenção e olha constantemente para o relógio comprado de um camelô.
Santana se aproxima. O fim do Bolero também. Pedro sorri confirmando, pela enésima vez, que estava certo, que o Bolero tem o mesmo tempo que o percurso que costumava fazer. “Será que esse tal de Ravel também pegava o metrô?”, pergunta a si mesmo sem saber que Ravel já havia morrido há muito tempo, que teria vivido em outro país e que o metrô de São Paulo nem sequer havia sido planejado.
Quando sobe ao ônibus, Pedro consegue um lugar para se sentar e resolve rebobinar sua fita. Está ali sentado, absorto em sua tarefa, quando entram dois rapazes, pulam a catraca e puxam suas armas anunciando o assalto. Todos se apavoram. Pedro se apavora. Os dois moleques começam a arrancar as coisas das pessoas. Tiram-lhes os relógios, as correntinhas com suas medalhas de santos, e até o tênis de um garoto, deixando-o com os pés no chão. Chegam, enfim, ao lugar de Pedro, que sem perceber, continuava com seu aparelho de som nas mãos, e que seria arrancado com certa violência. Pedro baixa os olhos e chora. Os ladrões saem pela porta traseira do ônibus antes mesmo que esse estivesse totalmente parado. Pedro continua chorando. Lamenta perder aquilo que o acompanhou por tanto tempo.

É preciso arranjar um novo trabalho, uma nova construção que mantenha sua família por mais alguns meses. Pedro sai atrás. Acorda às quatro, sai às cinco e pega seu ônibus até o metrô Santana. Às seis já está no vagão.

Táaaaaaaaa________Ta-Tá-Tá-Tá-Tá-Tá-Tá_________Ta-Tá-Táaaaaaaaa.
Assim faz o som daquele pé batendo insistentemente no chão do trem. Os dedos movem-se em movimentos repetitivos a cada frase melódica. Os olhos se fecham e esbugalham-se de acordo com o crescente da música, música que Pedro de Juazeiro ouve apenas em sua memória. No exato momento da última batida no chão o trem chega à estação Santa Cruz. Pedro desce, sobe a escada rolante e olha o “Xópi”, depois sai a caminhar pelas redondezas à procura de um novo arquiteto que possa lhe dar um novo Bolero.

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