segunda-feira, 25 de maio de 2009

CRÔNICA: UM WHISKY COM VINÍCIUS E TOM

UM WHISKY COM VINÍCIUS E TOM
Aniz Tadeu Zegaib



“HOJE! SHOW COM VINÍCIUS DE MORAES, TOM JOBIM, TOQUINHO E MIÚCHA”. Assim estava escrito num cartaz colorido colado numa das ruas de Florença. Era 1978, fazia um ano que me auto-exilara, cansado das incertezas que a ditadura trazia. Arrumei as malas e, com alguns poucos dólares nos bolsos, saí em direção da Europa, mais precisamente da Itália, mais precisamente ainda de Florença.
Como praticante e estudante da arte não poderia haver melhor lugar no mundo para um jovem como eu se tornar um exilado. Ali podia tanto encontrar a história da arte ocidental como estar perto do centro da arte moderna que fora Paris.
Com pouco dinheiro, vivia da venda de alguns desenhos, mais especificamente retratos, que vendia aos funcionários de um banco local. Eram retratos de suas noivas ou namoradas. Dessa forma conseguia pagar o aluguel de um quarto numa casa que fazia parte de um antigo convento renascentista, perto do ‘Giardino dei Boboli’. Esta casa pertencia a um jovem casal de arquitetos e, meu quarto, imenso, possuía um belíssimo afresco com ‘tromp l’oil’ no teto e nas paredes.
Estudava então em dois lugares, na Academmia Cappiello onde fazia um curso de desenho e história da arte e, também, no Istituto Statale d’Arte di Firenze, na Porta-Romana, onde fazia o curso superior de Magistério de Arte. Freqüentava saraus, casas de amigos artistas, gente de teatro e de música, bebia vinho, fumava haxixe, viajava pela Toscana, por Roma, por Milão, pela Calábria, por Gênova, por Paris e por Bruxelas, enfim, fazia muita coisa, mas nada se comparava às noites de boemia que tinha em São Paulo, minha terra, nada se comparava às noitadas nos teatros, nos shows, nos restaurantes e bares do centro, às cervejas e às cachaças, às mulheres apaixonantes do meio artístico. Sentia uma imensa saudade dessa vida. Gostaria, naquela época, de juntar as duas vidas que conhecia, assim seria um homem feliz. Mas eu não podia voltar, pois o Brasil continuava a perseguir e maltratar gente como eu. Não podia arriscar.
Dizia que gostaria de juntar as duas vidas que conhecia, pois a oportunidade me veio e pude aproveitá-la, ainda que por algumas horas. Andava eu com Orietta, uma bela italianinha, pelo centro de Florença, quando me deparei com o cartaz colorido que falava do show, naquela noite, com Vinícius, Tom, Toquinho e Miúcha. Nessa época eles representavam todo o mundo boêmio do Brasil, toda a brasilidade poética que falava das praias, da gente que é gente, do amor bem peculiar, das paixões, dos orixás, da cerveja, do sol, das tardes em Itapuã, das garotas de Ipanema e do whisky sobre o piano e a mesa do bar que formava o cenário do show. Eu precisava estar lá. Não tinha dinheiro, mas precisava estar lá.
Peguei Orietta pelo braço:
- Nós vamos a esse show.
- Como, se não temos dinheiro?
- Deixe comigo. Lembre-se que sou brasileiro.
Chegamos ao local do show. Lá estávamos nós diante de um porteiro que cuidava para que ninguém que não tivesse ingresso pudesse entrar. A apresentação se faria num teatro em forma de circo, e os camarins eram trailers.
- O Toquinho já chegou? – Disse, em italiano, ao porteiro com um forte sotaque brasileiro e uma expressão bem séria.
- Se chegou está naquele trailer. – Apontou o trailer e abriu a cancela para que nós entrássemos.
Na porta do camarim, ouvimos um violão afinando-se.
- Toquinho! – Gritei de fora.
- Entra aí cara! – Ouvi do violonista sentindo em sua voz um certo ar de saudade do Brasil, já que devia estar há um bom tempo fazendo aquela tournée.
Sem cerimônias, entramos e começamos a conversar sobre o Brasil e alguns conhecidos em comum. Ficamos ali por meia hora, creio, até que ele nos convidasse oficialmente para assistir ao show como convidados especiais. Reservou dois dos melhores e mais próximos lugares da platéia Entramos no teatro e aí percebi ser o único brasileiro naquele lugar.
O show começou. Duas garrafas de Ballantines 12 anos sobre a mesa onde sentava Vinícius, um copo sobre o piano de Tom, uma cerveja ao lado de Toquinho e seu banquinho e Miúcha cantando ao lado do piano. Tudo parecia Brasil. Parecia também que apenas eu podia entender aquele show descontraído e sem ensaio, aquele show de boteco de fim de noite, de alegres e extrovertidos um pouco alcoolizados, de desafinações e considerações hilárias sobre as músicas, enfim, lembrava-me os shows políticos do Tuca, em São Paulo, onde cada um entrava sem saber exatamente o que fazer, cantando todas as músicas e fazendo todos os discursos até que a polícia chegasse.
Deu-se o intervalo. Toquinho acenou-me e nos convidou para irmos ao camarim. Lá chegamos e lá estavam todos. Vinícius, muito gentil, nos ofereceu um copo de whisky. Bebemos e conversamos pelos quinze minutos que durou o intervalo. Assim conheci Azeitona, um crioulo baixinho que tocava contrabaixo acústico. Não conseguíamos saber quem carregava quem, se Azeitona o contrabaixo ou o contrabaixo o Azeitona. Encontrei-o muitas vezes aqui no Brasil após o meu retorno em 79. Soube que faleceu. Uma pena. Um grande cara.
Voltamos ao teatro e, mais alegres ainda, tocaram e cantaram os sucessos mais importantes das parcerias ali existentes. Pedi ao Vinícius que cantasse o Samba da Benção. Começaram a cantar e, quando dei por mim, era o único ali, em pé, na frente do palco, dançando e cantando com Miúcha esse belo samba. Foi lindo. Orietta, nessa altura, partilhava de minha alegria e dançava comigo.
Quando o show terminou, mais uma vez fomos ao camarim e tomamos mais um whisky com todos eles. Despedimo-nos e fomos embora com a saudade saciada do Brasil que eu amava e com o prazer de ter tido o privilégio de ter bebido com dois dos maiores poetas e compositores brasileiros, um dos maiores violonistas e também compositor e uma grande cantora. Naquela noite quase não dormi, tal era minha excitação. Tinha apenas 23 anos.

Um comentário: