segunda-feira, 25 de maio de 2009

CRÔNICA DA MORTE DE MEU PAI

Crônica da morte de meu pai
Aniz Tadeu - 26.12.2005


Do muro do hospital, na espreita da chegada do rabecão pelo portão dos fundos, uma casa da vila, de porta aberta, mostra uma menina que dança ao som do silêncio. Talvez eu não consiga ouvir a música que a incita em sua dança, mas é estranho observar a dança sem a música. Os movimentos me parecem desconexos, fugazes, perdidos num espaço atemporal. É como se assistisse a um filme mudo sem a trilha musical tocada pela orquestra. Até as cores, nesse dia nublado, apresentam nuanças acinzentadas. Enquanto a menina, com um constante sorriso, faz suas acrobacias musculares, meninos, um pouco mais adiante, jogam bola na inocência do futuro. Começo aí a me imaginar ainda criança com meu pai em plena juventude. Recordações de uma existência onde a compreensão não faz parte, mas sim as sensações e emoções. Começo a sentir o vazio da inocência que não existirá mais naquelas crianças, a menina e os meninos, em alguns anos.

Eu acabara de sair do necrotério. Lá estava meu pai de queixo e nariz presos com um esparadrapo (a boca insistia em ficar aberta e esta foi a solução encontrada para mantê-la fechada) e apenas um olho aberto. Esse olho aberto impressionava mais que sua aparência inerte, fria e sem essência. O olho era a única coisa que lembrava a vida que lá um dia existiu. Fixo, parado, porém olhava o invisível e parecia até que essa era sua última olhada para o mundo. O necrotério do hospital impressionou-me mais que o cadáver que ali repousa, assemelhando-se aos calabouços medievais. Escuro, paredes de concreto aparente, três leitos e apenas um deles ocupado com o que restou dos velhos anos de meu pai. O terno que eu trouxe o vestiu. Segundo minha mãe era seu terno preferido, cinza (talvez a cor mais adequada para a ocasião). A calça era preenchida por apenas uma das pernas e eu fiquei preocupado com a outra que já não existia. Meu pai, diabético, amputou uma das pernas poucos dias antes da morte.

O rabecão chegaria em duas ou três horas. Meu irmão e meu filho pegam o carro e voltam para casa a fim de se prepararem para o velório. Eu espero o carro funerário fumando um cigarro e recostado no muro que dá pra vila.

Mais uma olhada panorâmica, do alto desse muro, um grande sobrado roxo em ruínas, com alguns arcos e pedras salpicadas nas paredes ornando a fachada, parece desafiar minhas convicções. Uma janela aberta diz que o casarão é habitado. Procuro por movimentos e nada encontro. O roxo, cobrindo toda a área externa da casa, associado às funções sociais dessa cor, criam-me uma inquietação. Esses acasos sempre me inquietaram (os surrealistas os chamavam de ACASOS OBJETIVOS). Coincidência ou constatação?

O carro funerário não chega nunca. Meu irmão retorna e toma meu lugar na espera.

Toda a burocracia para a liberação do corpo e a aquisição do caixão causa-me repulsa pelas tradições. Na verdade gostaria que os funerais não sofressem qualquer influência de liturgias, que os corpos apenas fossem incinerados e se fundissem com as moléculas do ar, que se dissipassem ao vento. Na funerária o atendente, corajosamente (já que não nos conhecia) faz pequenas piadas sobre as urnas, dizendo ele mesmo ter experimentado todas (imaginei essas piadas ditas à minha mãe caso ela estivesse em nosso lugar. Certamente o atendente seria agredido com alguma violência).

Recebo uma ligação de meu irmão anunciando a chegada do rabecão. Demora algumas horas até que o corpo esteja exposto para o início da homenagem. Ele está recebendo um tratamento estético. O homem que trabalha nisso, nessa profissão um tanto quanto estranha, tira o esparadrapo do rosto de meu pai e, com superbonder, sela sua boca (no sentido literal). Faz o mesmo com o olho que insiste em permanecer aberto. Da aparência esquálida de defunto, meu pai passa a ter uma aparência serena (aliás, característica de todo morto – hábeis maquiadores), como se sua vida tivesse sido imaculada e agora ele estivesse a nos observar (lembrei-me de quando quis escrever, em forma de ficção, a história da imigração árabe no Brasil, com um defunto como narrador observando a todos em seu próprio velório). Quanto à minha preocupação com a ausência de uma das pernas, a solução foi cobrir todo o corpo com flores, talvez crisálidas (com um perfume suavemente insuportável).

O que restou de meu pai está exposto e as pessoas começam a chegar. Amigos de muitos anos que não se viam há muitos anos, parentes novos que ninguém sabia existirem, parentes velhos que nesse momento se tornam íntimos, desconhecidos que, nessa ocasião vêem a oportunidade de participar de um evento social, enfim, todo e qualquer tipo de gente.

Há coisas que deveriam permanecer somente no âmbito literário, assim como as condolências e os pesares. Algumas pessoas vêm a mim com palavras reconfortantes, com clichés do tipo “é, é a vida” ou “agora ele está bem, acabou o sofrimento” ou ainda “só a morte é certa, nós também, um dia, iremos”, como se eu as precisasse. Certo estava o enfermeiro da UTI que disse a mim, enquanto aguardava a declaração de óbito, “Que merda de natal, heim?”. Sua franqueza foi exemplar. Outras pessoas, no velório, invocam deuses e santos dizendo que agora meu pai está na companhia deles, como se fizesse alguma diferença, como se a morte fosse uma mudança de casa.

Conversas sobre assuntos variados, casos de gente que morreu de forma semelhante ou não, trocas de cartões em troca da promessa de um contato que nunca acontecerá, aquela prima que a gente não via há anos e que continua gostosa, a outra que está acabada e assim corre a noite até o fechamento do velório quando se dá meia-noite.

Sete horas da manhã. Já tem gente à espera do momento do corpo ir à Vila Alpina, onde deverá ser cremado. Mais gente, mais conversas, mais clichês, mais choros, mais risos e a espera do rabecão. Onze horas e o corpo de meu pai é colocado no furgão. Os carros o seguem na confiança de que o motorista saiba o caminho. Erra. Uma hora depois chegamos ao crematório. Burocracia, espera em fila e, finalmente, a hora da cerimônia. Sempre imaginei que a cerimônia de cremação fosse teatral, com luzes direcionadas ao caixão sobre um palco, com cânticos num som limpo e empolgante, emocionante. Decepção. O ambiente se resume a uma pequena arena, com 96 lugares e um buraco, rodeado de granito, no meio, de onde é elevado o caixão. Escolhi duas músicas e um cântico para a cerimônia (Ave Maria de Schubert, Ave Maria de Gounot e Padre Nosso em canto gregoriano). Eu as escolhi pela beleza da harmonia, pela genialidade das composições, pela emoção; não as escolhi pelo cunho religioso, nem pela esperança de um conforto maior. Imaginei um belo som, mas parecia mais aquele som de quermesse, um som oco e metálico que sai de caixas acústicas caseiras. Todas as luzes acesas. Dez minutos depois a urna é novamente rebaixada no buraco e a cerimônia é encerrada.

Todos que estavam ali presentes se despediram até o próximo evento fúnebre.

Finalmente é hora de dormir.

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