segunda-feira, 25 de maio de 2009

CONTO: O SAXOFONISTA CARPIDEIRO

O SAXOFONISTA CARPIDEIRO
Aniz Tadeu – 2007/2008

Com o corpo meio arqueado, cansado, Ben caminha carregando seu sax com as duas mãos, como se o instrumento, sua ferramenta de ofício, pudesse adquirir vida própria e partir em busca de um outro soprador que soprasse outras melodias. Talvez o nobre metal esteja tão cansado quanto seu dono de tocar quase sempre as mesmas músicas para um público quieto, sem reação, que nunca aplaude, indiferente àquela arte, que não sorri. Não raramente se pergunta por que escolhera esta profissão. Talvez compensasse mais tocar numa esquina ou numa estação do metrô, pois tem consciência de que o artista não vive sem os aplausos. Na noite anterior nada acontecera que a fizesse diferente de tantas outras noites. Chegou ao local, foi recebido por um dos filhos do defunto, recebeu as instruções necessárias que diziam onde deveria se colocar e a observação quanto ao volume baixo da música, sentou-se na cadeira a ele reservada, tirou o sax do estojo e começou a tocar num tom suave e audível apenas como um fundo para o burburinho constante das conversas sussurradas. Seu primo, proprietário de uma próspera funerária, lhe avisara, “principalmente a Ave Maria, de Gounod, e a repita quantas vezes for preciso”. Esse primo, seu único parente vivo, rico pelo negócio que possuía e para o qual nunca faltava cliente, o indicava às famílias dos falecidos e o instruía sobre as exigências dos parentes dos mortos.
Ben não precisava mais de partitura, aliás, sempre tocara de ouvido. Desde que começara nesse trabalho, o de trilha sonora ao vivo (sem sarcasmo) para velórios e enterros, partituras só eram necessárias quando o cliente pedia alguma música especial, como quando, por solicitação da família, tocara samba no velório de um jogador de futebol. Nessa ocasião, os companheiros de time do falecido, juntaram-se a ele com bumbo, pandeiro e chocalho, tocaram o pagode e até fizeram com que algumas pessoas ensaiassem uns passos. Para ele não houve grandes dificuldades, pois sempre fora eclético, tocava a música popular tão bem quanto jazz e clássicos. Na verdade estranhou um saxofonista em meio a pagodeiros, mas depois soube que seus serviços teriam sido ofertados gratuitamente e a família aceitou a oferta, agradecida. As Ave Marias, conhecia todas, Gounod, Schubert, Ceccioni, Gibilaro... Os Requiens também, Mozart, Verdi e todos os outros, obviamente arranjados para solo de sax. Conhecia ainda, por obrigação do ofício, a Marcha Fúnebre, de Chopin, que era tocada sempre no cortejo que levava o corpo à sua tumba, no cemitério, mas seu grande mestre inspirador era Cannonball Adderly, um grande saxofonista do jazz. Quando se iniciara na música, há mais de 45 anos, queria mesmo era ser músico de jazz. Tinha como ídolos, além de Adderly, Coleman Hawkins e Charles Parker.
Toda vez que chegava a sua casa, solitário que era, já que nunca se dispusera a casar ou viver com alguém, depositava o estojo do sax sobre o sofá, despia-se, entrava no banho e, lá, sob o chuveiro e observando as gotas d’água que deslizavam sobre os azulejos, ensaiava alguns acordes de Autumn Leaves, levando uma das mãos para perto da boca, como se fosse à embocadura do sax e a outra, com os dedos em movimento, simulando a postura e as teclas do instrumento, além daquele jogo de corpo que só os mestres das Big Bands sabiam fazer. Na noite anterior, durante um velório que já se estendia por mais de 4 horas, com todas as pessoas fatigadas diante de um defunto pálido e inerte, Ben, por alguns instantes, ousara tocar aquilo que era de seu gosto. Como estava sentado, levantou-se, fez pose de velho negro americano, ignorando sua condição de negro brasileiro, empunhou seu instrumento e começou a soprar, ressabiado, o clássico do jazz que tanto gostava. Muitos que lá estavam não conheciam a música que, assim sendo, certamente, era confundida com uma obra erudita. Para seu espanto, todos, até mesmo aqueles que velavam de perto o corpo ali estendido, interromperam o burburinho que sempre soa nos velórios, viraram-se em sua direção e, atentos aos seus movimentos e à apresentação, quando terminada, ensaiaram um sorriso de satisfação, modesto, mas ainda assim, um sorriso. Iniciou-se ainda uma conversa reservada, acompanhada de olhares furtivos, entre alguns dos presentes. Durante a execução de Autumn Leaves, o sentimento transcendera o momento e seu sax soara como o choro de uma carpideira. Ben gostara da experiência. Pela primeira vez, em todos esses anos, deixou o velório com um olhar que vislumbrava o futuro.
Há alguns anos Ben Syll faz esse trabalho. Desempregado, seu primo teve a idéia de colocá-lo para vender caixões e os demais serviços funerários, mas ele não conseguia ser um bom vendedor. Todo cliente que entrava, insistia em vender o caixão mais barato e dizia ao cliente que o morto não se importaria, pois nunca ouvira falar de um defunto descontente com a qualidade da urna. Dizia ainda que os caixões seriam devorados por cupins e isso representava um desperdício de madeira e dinheiro. Quase sempre persuadia os clientes com esse argumento e os caixões mais caros, os nobres e imperiais, aqueles que traziam maior lucro à funerária, encalhavam. Nas horas vagas, quando não havia nenhum cliente na loja, tocava seu saxofone e, num desses momentos, entrara um cliente e o observara. Gostando do que viu e ouviu, perguntou a ele se poderia tocar algumas músicas clássicas religiosas no velório de seu pai. Um pouco espantado com o convite, aceitou achando que essa poderia ser uma oportunidade de mostrar seu talento, mesmo sendo num evento fúnebre. Seu primo, atento à conversa, depois da saída do cliente, decidira que ele não venderia mais caixões e que, daquele momento em diante, seria um músico carpideiro. “O que é isso?”, perguntou assustado com a palavra. “Você tocará seu sax nos velórios e nos enterros. No início fará isso de graça, até que as pessoas se acostumem com a idéia, depois passaremos a cobrar pelo serviço extra”. O primeiro cliente para as Aves Marias e os Réquiens já existia. Naquela noite carregou seu sax e, chegando ao recinto onde se encontrava o cadáver, deitado em um caixão nobre bem no centro de uma ampla sala, na residência da família, meio desajeitado, por ser sua primeira vez, colocou-se num canto e, timidamente, começou a fazer seu sax chorar, bem baixinho. Daquele dia em diante, muitos outros rituais funéreos tiveram sua participação, sempre com as mesmas músicas, a mesma discrição, mas sem a timidez da primeira vez.
Ben gostou da experiência de ter tocado um clássico do jazz naquele velório. Claro que, pelas circunstâncias, escolheu um tema melódico e suave. Não podia escolher diferente, mas isso não o impediu de imaginar como seria se tivesse usado de improvisos e se empolgasse com a música como os grandes mestres faziam. Lembrou-se, por um instante, dos filmes que vira sobre New Orleans, com o jazz tradicional à frente de um cortejo fúnebre. Pensando nisso, caminhando em direção à sua casa, sorriu maliciosamente, como se planejasse algo.
Já era madrugada alta quando entrou em sua casa, banhou-se, comeu o que havia na geladeira, queijo e presunto num pão dormido, e, insone, levou o sax à boca e começou a ensaiar, freneticamente, muitos dos clássicos do jazz que conhecia. Já era dia claro quando o sono bateu. Cansado e satisfeito com o ensaio, jogou-se na cama com a certeza de que teria um bom sonho.
Mais uma noite e mais um velório. Desta vez o evento se faz em um hospital, local de falecimento do cliente. Quando Ben chega, percebe que ali, em várias salas contíguas, muitos são os velórios. Como a sala de seu cliente era a última, teve que passar por todas as outras. Curioso e observador que é, entrou em cada uma, se aproximou do caixão e, como sempre fazia, começou a imaginar quais seriam as músicas adequadas àquele velório. Na primeira sala encontrou uma menina de uns 13 anos, segurando uma boneca entre as mãos cruzadas, ainda corada pela maquiagem feita pelos hábeis maquiadores. O público ali era jovem e muito triste. Soube, por ouvir com o pé da orelha, que a adolescente havia sofrido um acidente, teria sido atropelada por um motorista imprudente. Logo pensou na trilha sonora para aquela adolescente e aquele público, “Quem sabe algum rock?”. Poucos passos depois, já na sala seguinte, encontrara um velho com uma barba branca longa e crespa e cabelos compridos. Vestia uma túnica colorida e usava alguns anéis em seus dedos. Ali estava uma figura dos anos 70 e todos os que o velavam assemelhavam-se a ele na aparência. Era um remanescente hippie, freqüentador e vendedor de bijuterias numa das feiras de artesanato da cidade. “Aqui eu tocaria alguma música de George Harrison ou, quem sabe, Mammas and Pappas”, sussurrou para si mesmo. Mais adiante um empresário do ramo da construção civil repousava plácido, vestindo um terno “risca de giz” azul, sobre o forro de cor púrpura, acolchoado e aveludado, de um caixão imperial. Parou e deu uma boa olhada em tudo e em todos, pois ali estavam alguns de seus potenciais clientes. Por ter visitado essa sala, decidira que aquela noite seria especial, faria uma nova experiência, tocaria ao menos dois clássicos do jazz.
Como sempre faz, entrou na sala, se aproximou do caixão, conversou com um dos parentes do defunto e, quando soube que era o velório de uma atriz de teatro, empolgou-se ainda mais para tocar outras melodias que não as convencionais, pois tinha a certeza de que, naquela noite, muitos artistas estariam presentes e, como sabia, os artistas têm espíritos mais dispostos a novos eventos. Sentou-se, empunhou seu instrumento e começou com a Ave Maria, de Gounod, depois o Réquiem, de Mozart. Até esse momento o comportamento das pessoas não se diferenciara em nada daqueles que havia experimentado até então.
Num gesto lento e de olhos fechados, levantou-se e, em pé, começou a entoar os acordes de Summertime. Sem enxergar nada além de sua alma, percebeu que, aos poucos, as conversas se dissipavam e o silêncio começava a se fazer, deixando apenas que a música invadisse aquele lugar. “Ninguém, em sã consciência, resiste a esse clássico do blues”, ponderou. Por um momento abriu seus olhos como se quisesse saber da aprovação ou reprovação de sua ousadia. Para sua surpresa todos estavam virados em sua direção como se ele estivesse em um palco. Quando terminou Summertime, as pessoas continuaram ali, olhando pra ele, como que esperando uma nova canção. Autumn Leaves foi a escolhida para dar continuidade à sua apresentação. Novamente fechou seus olhos e, pouco tempo depois de iniciada a música, os abriu novamente e, para seu espanto, havia ali, naquela sala, no velório da atriz, muito mais gente que aquelas que estavam no início. As pessoas dos outros velórios, da menina, do hippie, do empresário, curiosas, foram constatar a cena inédita protagonizada por ele. Por um momento achou que havia ultrapassado seus limites, que sua ousadia poderia acabar com a carreira, mas nada disso aconteceu, na verdade os vigias de corpos, todos, se tornaram platéia para um artista sensível.
Ao fim da execução de Autumn Leaves os aplausos foram inevitáveis. Como se esquecessem que ali havia um morto, estirado num caixão no centro daquela sala, ainda que timidamente, todos sorriram e aplaudiram. Um dos filhos do empresário velado ao lado, um dos que haviam chegado sorrateiramente para ouvir aquele som, aproximou-se dele e o convidou para agraciar a todos que estavam no velório de seu pai com uma pitada de boa música. Disse-lhe ainda que seria bem recompensado.
Aceitou, quase que humildemente, porém com certo orgulho, a proposta. Foi nesse momento, num rompante, que escolhera o nome que usaria daquele dia em diante, Ben Syll, derivado de seu nome de batismo, Benedito Silveira. Queria mesmo era ser confundido com um músico americano, daí o Syll, com ípsilon e dois eles.
Pediu licença à família da atriz para se retirar, pois já havia encerrado sua apresentação, e foi à sala onde jazia o empresário e seu terno “risca de giz”. Orgulhoso de si mesmo, pôs-se em pé num canto da sala e preparou-se para fazer seu sax chorar. Ali não tocou Ave Maria nem, tampouco, Réquiens, tocou sim os clássicos jazzísticos que havia executado no velório anterior e ousou outras interpretações, tais como As Time Goes Bye e Moon River. Num ímpeto de satisfação com a reação agradável dos presentes, entoou Insensatez, de Tom, ao estilo de Stan Getz. O público não mais velava o defunto, participava sim de um recital de jazz e bossa-nova e se deliciava com isso. Muitos daqueles que estavam no velório da atriz, furtivamente, se dirigiram à sala do empresário, continuando assim o prazer da audição. Depois de uma hora de música, tirou alguns cartões da funerária de seu bolso e os distribuiu para as pessoas que o admiravam. Havia lá ao menos duzentos amigos e parentes do empresário, além de alguns jornalistas que faziam a cobertura do evento, já que, quando vivo, o defunto fora um homem conhecido por seus feitos sociais.
Com o dinheiro recebido na noite anterior, perambulou pelas ruas do centro à procura de brechós. Encontrando um que vendia roupas usadas americanas, adquiriu um paletó de veludo azul, com cotoveleiras de couro, e um chapéu de feltro vermelho com fita preta. Ainda no provador da loja, vestindo seu novo traje, sentiu-se um verdadeiro membro dos clubes de jazz da New York dos anos quarenta.
Dois dias depois começou a receber convites para outros velórios. A distribuição dos cartões funcionara. Pessoas ricas e de boa cultura o procuravam, na funerária, para que se apresentasse já com o novo repertório. Os clientes faziam questão do jazz e da bossa-nova.
A notícia da existência de Ben Syll se espalhara, já que os jornalistas que estavam ali para a vigília do empresário decidiram escrever e publicar matérias a seu respeito, matérias de exaltação à ousadia do músico.
Diante da nova realidade em sua carreira, decidira por convidar um amigo, contra-baixista, para acompanhá-lo no próximo trabalho. Oliva, um negrinho de pouco mais de um metro e meio, toca contra-baixo acústico. Até hoje não se sabe se ele carrega o instrumento ou o instrumento o carrega.
Vestido com seu novo traje, de “american jazzman”, e com seu novo nome, acompanhado de Oliva, Ben chega ao local, o velório de outro empresário. Summertime, As Time Goes Bye, Autumn Leaves, Insensatez, Corcovado, Chega de Saudade, Dindi, Se Todos Fossem Iguais a Você..., enfim, um repertório repleto de belas melodias fez do velório um evento menos triste e menos maçante.
Rádios e canais de TV o chamaram para entrevistas, revistas e jornais de circulação nacional, publicaram seu nome inúmeras vezes. Assim Ben ficou famoso em todo o país. Músicos de outras cidades, em todos os estados, inspirados em Ben, começaram a fazer o mesmo e, no nordeste, tocavam baião e forró fazendo dos velórios verdadeiros shows onde até a dança fazia parte, no Rio era samba e bossa-nova, no sul, sanfoneiros tocavam músicas regionais, no Mato Grosso, moda de viola. Em todo lugar havia ao menos um músico a seguir os passos de Ben.

Ben, em toda sua carreira de saxofonista carpideiro, nunca faltara a um compromisso. Era sempre pontual e completamente profissional. Entrava, tocava e saía sem que ninguém se sentisse incomodado. Numa noite fria, chuvosa, enquanto os parentes de um novo defunto o esperavam, Ben não chegou. No dia seguinte não apareceu na funerária. Ninguém o viu saindo de seu apartamento. Seu primo foi até ele e, campainha e batidas na porta não o fizeram atender. Depois de muita insistência, pediu ao zelador que abrisse a porta. A porta se abriu e os dois entraram. No quarto estava lá o corpo estendido no chão, vestido apropriadamente para o trabalho, o chapéu caído de um lado e o estojo do sax do outro. Ben sofrera um aneurisma cerebral. Ben morrera.
A notícia de sua morte se espalhara pelo país. Toda a imprensa falou de seu fim com um tom de lamento. Seu velório aconteceria a partir daquela tarde.
Todos os músicos carpideiros do país vieram com seus instrumentos. Eram mais de cinqüenta. Todos os clientes de sua arte também compareceram. Seus discípulos, um de cada vez e, vez por outra, como numa Jam-Session, dois ou três deles juntos, tocaram muito jazz, bossa nova e outros gêneros. Num gesto de despedida, quase na chegada da hora do enterro, todos se uniram e entoaram, com seus instrumentos, os acordes de Autumn Leaves. A emoção invadiu a sala e as lágrimas caíram despudoradamente. O velório de Ben tornou-se um grande e emocionante espetáculo musical. A cada música tocada, uma salva de palmas para o saxofonista. A cada música soada, uma lágrima escorrida pelo rosto das pessoas.
No cortejo até sua tumba, moradia definitiva, todos os músicos juntos tocaram melodias do jazz tradicional, aos moldes daqueles de New Orleans.
O caixão foi depositado na vala e, antes da primeira pá de terra, seu primo depositou o sax e o chapéu sobre ele.

Ben sonha, sepultado sob as folhas do outono.

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